sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Literatura, cidadania e meio ambiente: a literatura paradidática e o politicamente correto



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A coleção “Criança consciente: construindo um mundo melhor”
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A coleção “Criança consciente: construindo um mundo melhor”, publicada pela Brasil Cultural, reúne oito livros paradidáticos que abordam histórias ligadas à cidadania e meio ambiente. Integra o projeto “Ler, conviver e aprender”, que se propõe a “estimular e desenvolver o prazer pela leitura” e “fortalecer o contato familiar”, segundo consta no site oficial da Brasil Cultural (2013). O site também disponibiliza uma sinopse de cada livro, apresentando a relação da história com o meio ambiente:
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O primeiro livro apresentado, Bafo de onça não quero, não!, aborda uma excursão escolar ao zoológico, quando dois amigos se surpreendem com o fato de que também os animais precisam de higiene bucal. O segundo livro, Cidadania a gente aprende, conta a história de dois amigos, João e Maria, que têm a oportunidade de exercer a cidadania, tendo como ponto de partida a arborização urbana. O terceiro exemplar, Não vem com essa, tô fora, trata da conscientização sobre os danos das drogas na vida das pessoas e na sociedade.
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Em A fada d’água, a garota Lívia faz uma viagem pelo mundo da fantasia e percorre todas as etapas do tratamento da água. Na história Lixo em lugar certo, o garoto Guilherme vive uma experiência comparativa entre passado e presente que o leva a pensar sobre o destino do lixo e as implicações ao meio ambiente. Já Maria Clara e o indiozinho Caruana são as personagens centrais do livro Amigos do meio ambiente. Em experiências conjuntas, os dois conhecem um a cultura do outro para aprender a cuidar do meio ambiente.
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Os dois últimos livros tocam em assuntos que também têm se destacado na educação escolar. Princesa Margareth retrata uma menina amável, tratada como princesa no ambiente familiar, mas que é vítima de bullying na escola. E, por fim, A turma da Naty contra a Denguemur focaliza ações coletivas que podem ser somadas às do poder público na luta contra a dengue.
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Trata-se, de fato, de uma coleção de livros paradidáticos que se constituem na relação com o literário, reunindo o ficcional e o ilustrativo, explorando cores e imagens. 
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Entre o paradidático e o literário



     Antes de discutirmos sobre a proposta ambiental presente na coleção “Criança consciente”, entendemos que, em se tratando de livro paradidático, precisamos, antes, discutir o que é a que se propõe esse tipo de material e que relações são possíveis de se estabelecer com a literatura.

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Ricardo José Duff Azevedo, escritor, ilustrador e doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo, no artigo intitulado “Livros para crianças e literatura infantil: convergência e dissonâncias”, publicado em 1999 e disponibilizado no site pessoal do autor, traz um levantamento dos tipos de livros encontrados em prateleiras de livrarias e direcionados a crianças: livros didáticos; livros paradidáticos; livros-jogo; livros de imagem; CD-rom; livros de literatura infantil.
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Nosso interesse está voltado à compreensão do paradidático e do que se compreende por literatura infantil. Quanto aos livros paradidáticos, Azevedo (1999, p. 2) observa que se tratam, assim como os didáticos, de um material essencialmente utilitário, reunindo informações objetivas para transmissão de “conhecimento e informação”. “Em geral, abordam assuntos paralelos, ligados às matérias do currículo regular, de forma a complementar os livros didáticos”. Em síntese, os temas focalizados pelos livros paradidáticos compreendem preservação do meio ambiente, educação sexual, prevenção de doenças, amor à natureza, características da vida no campo e na cidade, cidadania, prevenção contra uso de drogas, entre outros.
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Curiosamente, assim como os livros didáticos, os paradidáticos requerem atualização periódica, conforme esclarece o autor, pois tratam de assuntos pontuais, atuais, que se modificam com o passar do tempo. Como exemplo, podemos citar a dengue. O assunto passa a ser foco dos livros paradidáticos porque se trata de um problema em vigência. Se deixa de existir, de certa forma, perde o interesse utilitarista.
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Quanto à literatura infantil propriamente dita, Azevedo (1999, p. 5) explica que não tem a pretensão de defini-la, considerando que se trata de um assunto que dá margem a opiniões e explicações de teorias diversas. Contudo, considera ser possível afirmar que a literatura, “em termos, é uma arte (em oposição à ciência) feita de palavras”. Sempre recorre à ficção, caso contrário seria registro histórico, reportagem ou mesmo biografia, entre outros. Há, também, motivação estética, isto é, “em princípio não tem utilidade fora buscar o belo, o poético, o lúdico e o prazer do leitor”; não é, portanto, utilitária. Vincula-se à subjetividade, ao inesperado. Costuma ser ambígua, podendo brincar com as palavras e mesmo inventá-las, sem aprisionamentos à norma culta da língua.
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Interessante é que, pensando em literatura nacional para crianças, a perspectiva utilitarista já se faz inscrita de forma imbricada ao literário desde o início. Segundo Azevedo (1999), a obra de Monteiro Lobato, como fundadora, de certa forma, da moderna literatura voltada a crianças, reúne, ao mesmo tempo, aspectos do mágico, do original e do ficcional e uma perspectiva utilitarista, recorrendo, também, à intenção pedagógica. O autor se refere a isso como uma espécie de hibridismo entre o literário e o utilitarista/pedagógico. Com base na discussão aqui apresentada é que buscamos observar analiticamente a relação possível entre literatura e meio ambiente em livros paradidáticos da coleção “Criança consciente”.  

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O discurso do "ecologicamente correto"
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Pelas temáticas distribuídas entre os oito exemplares da coleção “Criança consciente: construindo um mundo melhor”, observamos, justamente, a presença de temas apontados por Azevedo (1999) como sendo geralmente focalizados pelos livros paradidáticos: preservação do meio ambiente, prevenção de doenças, amor à natureza, cidadania, prevenção contra uso de drogas, entre outros.
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Para fins de uma proposição analítica, focalizamos quatro desses oito livros que mais diretamente se relacionam com questões vinculadas ao meio ambiente: “Amigos do meio ambiente”, “Lixo tem lugar certo!”, “A fada d´água” e “A turma da Naty contra Denguemur”.  Os três primeiros de autoria de Denise Telles e o último de Eduardo Bento. “Amigos do meio ambiente” é ilustrado por Betina de Holanda, Salatiel de Holanda e Salu dos Santos. Marco Cortez faz a ilustração de “Lixo tem lugar certo!” e Betina de Holanda é a ilustradora de “A fada d’água” e “A turma da Naty contra Denguemur”.
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            Objetivando discutir como se dá a relação entre literatura e meio ambiente nesses livros, partimos de uma perspectiva de análise materialista do discurso, de vertente francesa. Esclarecemos, contudo, que a discussão aqui apresentada não se configura em interpretações provenientes, propriamente, de uma análise discursiva, mas são tateamentos iniciais de um percurso analítico, que pode auxiliar olhares outros para o material, ao menos geradores de incômodos e novas problematizações de lugares/sentidos estabilizados. 
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Ao considerarmos as condições de produção dos livros, o paradidático emerge como condição requerida para se pensar a relação entre formulação e funcionamento discursivo. Isso significa que não se pode desconsiderar que, frente às condições de produção de livros do gênero paradidático, está inscrito em sua constituição o princípio utilitarista e educativo padrão de moldar comportamentos tidos como “adequados” e “desejados” para a formação de um modelo padrão de  “cidadão”.
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No primeiro contato com a coleção “Criança consciente: construindo um mundo melhor”, o incômodo inicial surgiu da sustentação, pelo título, de sentidos estabilizados, como se fossem óbvios, transparentes. Referimo-nos aos termos “consciente” e “mundo melhor”, que aparecem no título e subtítulo da coleção. A naturalização desses termos, na relação com o meio ambiente e a educação, ocorre devido ao não questionamento sobre o que é ser consciente: ser consciente em relação a que, para que, para quem e em que lugar e situação social? O mesmo ocorre com relação à ideia do que seja um “mundo melhor”. Se é “melhor”, não há, como efeito, por que se questionar. Propõe-se apenas a adesão à “luta”; não se interroga o que é um “mundo melhor”. Melhor em relação a que, para que, para quem, sob qual ponto de vista?  Portanto, enunciar “criança consciente” e “mundo melhor” é positivar um lugar de defesa do mundo pela educação/formação de crianças supostamente comprometidas com esse mundo a vir a ser. Em termos mercadológicos, funciona a perspectiva do vendável, justamente ao se interditar a questionabilidade do maniqueísmo aí vigente: consciente X sem consciência; melhor X pior.
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O problema é que a ideia de “criança consciente” em relação ao meio ambiente e à cidadania, que tem sido propagada no e pelo discurso pedagógico, e que tende a se fazer presente nos materiais didáticos, paradidáticos e paradidáticos literários, se sustenta na propagação do discurso “ecologicamente correto” e do “discurso cidadão”, como espécies de tipologias discursivas. Daí que o foco é para o resultado (como produto) de “ser consciente” e do apagamento do processo necessário para a elaboração crítica da ideia do que seja consciência ou um mundo melhor.
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Exemplificando: Certa vez um menino de oito anos estava para atravessar a rua acompanhado da mãe. Então ele disse a ela que para atravessar a rua precisariam passar pela faixa de pedestre. A questão é que, nas proximidades, não havia faixa de pedestre. Então a mãe explicou isso ao menino e esclareceu como fariam para atravessar de forma segura, na ausência da faixa. O menino se recusou a atravessar, chorou, fez birra, e queria de toda forma fazer a mãe caminhar até que pudessem encontrar uma faixa de pedestre, alegando que a professora havia dito que não poderiam atravessar a rua fora da faixa. Então a mãe perguntou ao menino se a professora havia explicado sobre como proceder na ausência de faixas, e que a cidade, em sua (des)organização urbana, apresenta deficiências estruturais, que deveriam ser de responsabilidade do poder público. Também, perguntou ao filho se a professora discutia tais deficiências, e como, então, eles poderiam pensar essas questões. A criança, perdida, só conseguia voltar à ideia da proibição: É proibido porque é proibido. Ponto. Ou seja, todos os porquês estavam silenciados pelo “faça isso, que é a coisa certa, e ponto final”. Trata-se de um exemplo, de fato corriqueiro, que vem para ilustrar o que estamos chamando de visibilizar o produto e apagar o processo, ou seja, simplesmente tomar a ideia de consciência como algo cristalizado, inquestionável, assim como reproduzir a ideia de “mundo melhor”, utopicamente sustentado.
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Como afirma Orlandi (2001, p. 167), “a melhor maneira de preservar é construir condições para a preservação. E isto não se faz só com palavras de efeito [como criança consciente e mundo melhor, por exemplo], se faz construindo condições materiais básicas. Em consequência, a preservação viria por si”. Para ela, o que se tem feito é praticar “o discurso ecológico da irresponsabilidade”, no sentido de que “se fala na responsabilidade do indivíduo na falta de responsabilidade social do Estado”. E isso se põe na relação com o discurso da cidadania, que se apresenta, nele, como algo sempre a vir a ser. Contudo, ainda segundo a autora, “numa República já nascemos cidadãos. Não é preciso, pois, reivindicar a cidadania. Já a temos por direito. Qualificar cidadãos é tarefa do Estado e se ele não cumpre só podemos reivindicar qualificação se, no real de nossa história, esse sentido já tiver sido posto”.
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Orlandi (2001, p. 175) chama a atenção para o fato de que
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as leis que se discutem quando se trata do meio ambiente, se pensamos um ser histórico e simbólico, não são leis da natureza mas leis sobre a natureza a serem elaboradas e praticadas. É preciso além disso produzir um discurso que não se sustente apenas no que já é conquista do saber e da racionalidade, mas admita também a irracionalidade, a relação da sociedade com a história (nem sempre possível) e com o político e, principalmente, com o imaginário que rege as relações com o real e com o que faz sentido.
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            Considerando essa ideia de discurso “ecologicamente correto”, tomado como bandeira pela escola, especificamente quanto aos quatro livros tomados para tratamento analítico-discursivo, observamos que, na condição (e lugar) de livros paradidáticos, eles não têm como não ser utilitaristas e cristalizadores de sentidos. Embora, por si, tais livros não sejam literatura, recorrem a ela para cumprir sua eficácia utilitarista e pedagógica instrucional. E tal recorrência se faz calcada em personagens clássicas/estereotipadas da literatura, como a fada (A fada d’água), o vilão e o super-herói (A turma da Naty contra Denguemur).
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            Apenas em termos paradidáticos, os livros fogem, de certa forma, a representações totalmente estereotipadas na condução do enredo e à forma como tais personagens são retratadas. Em Amigos do meio ambiente, o indiozinho Caruana é filho de um professor universitário que coordena um projeto de preservação das matas ao redor dos rios e está se instalando na cidade. Foge, no sentido de que o índio não é posto como mero objeto de estudo, mas está ao lado de quem é apresentado como detentor do conhecimento científico, no caso, seu pai, professor-pesquisador, no contexto urbano. Também se trabalha a ideia de que o conhecimento geográfico da aldeia onde o indiozinho morava não é extensivo, de antemão, a outras áreas. O que problematiza a ideia de que índio e natureza seriam uma e a mesma coisa.  Trabalha-se, ainda, uma proposta de diversidade cultural e de valorização de especificidades culturais, além do intercâmbio entre culturas.
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Discursivamente, contudo, sustenta-se a ideia da autoridade acadêmico-científica regulatória das ações de preservação ambiental. Retrata-se o professor universitário, o projeto universitário de preservação, o tratamento de doutor a um pesquisador nomeado por cientista, o domínio do conhecimento sistematizado, a experiência em campo, a organização de campanhas de “conscientização”, mobilizadas por crianças, para divulgar a necessidade de preservação ambiental e a ideia de cidade em “perfeita harmonia com o meio ambiente”, enunciada ao final do livro. Isso tudo sinaliza que o foco é para questões pontuais do cotidiano, que se apresentam como responsabilidade da escola no sentido de instruir, orientar, “conscientizar”, e de responsabilidade da criança, a quem cabe seguir as orientações, no campo de inquestionabilidade, apresentadas pelas autoridades científicas/educacionais.
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Em Lixo tem lugar certo! aparece novamente a figura da professora. Há ficção, mas sempre girando em prol do educativo com fins utilitaristas. No caso da história A turma da Naty contra Denguemur, a dengue, como o mal ameaçador da sociedade, materializa-se na personagem vilã, Denguemur. O literário está na construção da história ficcional, calcada na disputa entre o bem e o mal, e na luta para se vencer o inimigo, embora preso a uma luta real, de fato, da sociedade contra o mosquito da dengue e sua proliferação. Ao final do livro, sob o título “Saiba mais”, como se fosse um almanaque, apresentam-se textos que explicam o que é a dengue, os tipos da doença, quem é o mosquito, como se proteger contra a dengue, além de curiosidades. A fada d’água também recorre ao mundo ficcional, centrado na figura da fada. A história traz a fantasia de viajar na e pela imaginação dos contos de fada. Contudo, mantém-se a finalidade instrutiva, de preservação do meio ambiente pelo não desperdício de água.
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A questão que se impõe frente ao funcionamento e aos efeitos desses livros é justamente como trabalhar com esse material, numa perspectiva literária, a ponto de não ser reducionista e ficar apenas preso a frases feitas, meramente decorativas, ou visões estereotipadas de educação ambiental e “consciência” ambiental, assim como de “literatura ambiental” funcionalista. Antes, requer-se entender que, frente às suas condições de produção, tais livros são paradidáticos. Dialogam com a literatura, mas não se propõem a ser literários. E isso, por si, já faz toda a diferença. Mas é possível criar outras histórias, com os alunos, a partir dessas, em que o literário advenha como elemento central, retirando o peso utilitarista e forçosamente pedagógico. Pensamos que, do lugar literário, da imaginação, da relação com o simbólico, o pedagógico se instaura como processo, não se reduzindo a função. Além disso, é mais propriamente pelo imagético, no caso dos livros da coleção, que as histórias se abrem ao literário, pois, nesse caso específico, não estão presas, propriamente, ao instrucional.
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Orlandi (2012, p. 144-155) esclarece que “um enunciado pode ter muitas versões, e nelas, os sentidos não são os mesmos”. Ao propor uma inversão do enunciado “O futuro dos recursos” para “Os recursos do futuro”, ela explica que, na primeira formulação “pressupõem-se que temos estes recursos e nos debruçamos sobre a vontade de mantê-los, expandindo-os ou sobre a ameaça de perdê-los”, enquanto na segunda formulação, parafrasticamente proposta por ela, admite-se “o não sabido, o não existente e o que poderá vir a existir”. Para ela, não determinamos o futuro mobilizados por nossas vontades, mas há como “refletir sobre o que temos e deixar aberta a porta do que se pode passar entre o irrealizado e o possível”.


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REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Ricardo. Livros para crianças e literatura infantil: convergência e dissonâncias.Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/wp/wp-content/uploads/Livros-para-criancas-e-literatura-infantil.pdf. Acesso em: 8 set. 2013.
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ORLANDI, Eni Puccinelli. A textualização política do discurso sobre a Terra. In: ______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. p. 163-177.
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______. Os recursos do futuro. In: ______Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes, 2012. p. 143-150.
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GT 4 

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