quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Viajando no trem de ferro de Manuel Bandeira


Manuel Bandeira foi um dos maiores poetas dentre os considerados constituintes da geração de 22 da literatura moderna brasileira. Grandes doses de simplicidade e lirismo permeiam sua obra, que, em geral, aborda temas cotidianos e universais. Enquanto grande conhecedor de literatura, Bandeira utilizou-se de formas inovadoras – repudiadas pela tradição literária de sua época – de modo a explorar recursos que evidenciam sua maestria e originalidade na composição de um poema. O autor também escreveu poesias que, entre outros aspectos, por seu caráter lúdico, musicalidade e relação com a cultura popular, são adequadas ao público infantil.
Veremos adiante uma análise do poema Trem de Ferro – escrito pelo autor na década de 30 – que permite a identificação de algumas características resultantes da abrangência do conhecimento de Bandeira, que era profundo conhecedor desde a poesia clássica, tradicional e escrita, até a cultura popular e oral – pouco valorizada ou abordada pela literatura da época. Vale observar que Trem de ferro, apesar de ser muito compreensível por uma criança, por sua linguagem simples, não parece ter sido escrita exclusivamente para o público infantil; parece instigar o leitor a encontrar a criança que há dentro de si, independente de sua idade, conduzindo-o a uma viagem de trem.
Eis o poema:
                                                   Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô..
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
Que vontade
De cantar!
Oô…
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia
Ôo…
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Ôo…
Vou mimbora voou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Ôo…
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…



 
            Inicialmente, é interessante saber que no período em que o poema que acabamos de ler foi escrito, o trem de ferro era um meio de transporte (e também comunicação) muito utilizado e essencial para a economia agrícola do país. Além disso, na época, as pessoas costumavam se aglomerar para ver a chegada do trem. Como as mudanças importantes de uma sociedade se manifestam em sua literatura, era de se esperar que o trem viesse a ser mote de obras literárias.
Manuel Bandeira, no poema em questão, cria imagens acústicas que remetem aos sons produzidos por um trem em movimento: a musicalidade criada pela métrica livre, que não atende às regras tradicionais, dá liberdade a uma reprodução alegórica da cadência do trem em diferentes velocidades. Os três primeiros versos (Café com pão) são tetrassílabos, e pressupõem uma velocidade linear, e correspondente ao início de uma viagem. Os três sons oclusivos explosivos representados pelas letras c (que aparece duas vezes) e p, alternados com o fonema representado pela letra f simbolizam a cadência do trem. Além disso, o fato de café e pão serem alimentos geralmente consumidos no café da manhã pode ser um indicativo de que o autor alude ao início do dia e da viagem – afinal, era pelo amanhecer que muitos trens iniciavam suas jornadas.
Posteriormente, o leitor se depara com o verso “Muita força” – que se repete três vezes. Este possui três sílabas poéticas  - Mui (1ª) / ta (2ª) / For (3ª) ça (não conta, pois é pós-tônica) -, o que sugere uma velocidade maior que as quatro dos versos do início. Pode-se dizer, ainda, que sugere uma aceleração progressiva, já que muita força indica potência e aumento da velocidade no deslocamento do trem. É interessante observar, também, que após os versos em questão se dá a maior alternância de elementos constituintes da paisagem que pode ser vista por aqueles que estão no interior do trem. O fato de tais elementos (bicho, povo, ponte, poste, pasto, boi, boiada e galho) serem citados em versos trissílabos, em que se mantém a alternância entre sons fricativos (representados pelas letras ss, ch e Ç) e oclusivos (por sua vez, representados pelas letras b, p t, d e g), pressupõe uma maior velocidade do trem. Já os versos subseqüentes “Que vontade / De cantar”, um momento de mais alegria e empolgação por parte do eu-lírico. Este por sua vez, parece ser uma criança ingênua, o que torna o poema ainda mais belo e singelo.
É importante observar que a aproximação dos temas do poema com assuntos das cantigas populares e orais – o árduo trabalho no campo, no caso – associada à linguagem coloquial próxima de variantes não correspondentes ao padrão culto – como pode-se observar nos vocábulos “prendero”, “canaviá”, e “mimbora”, por exemplo -  mostra uma literatura autóctone, que valoriza a cultura regional e nacional.
Por fim, o término do poema ainda parece ter um tom melancólico, por fazer menção à saudade que o eu-lírico sente de sua terra. Os versos trissílabos ainda dão a ideia de velocidade e continuidade para a viagem, já que o poema termina com reticências. Porém, parece que, em oposição aos versos Café com pão e Muita Força, os versos “Pouca gente” indicam um arrefecimento tanto na velocidade do trem, quanto no estado de espírito do eu-lírico, ou mesmo o vindouro término da viagem. Observe-se também que eles remetem à ideia de que o trem é de carga, e carrega muito mais produtos agrícolas do que pessoas, já que a economia da época era tão ligada à agricultura.
Que fique claro que o presente texto não pretende esgotar possibilidades de leituras para o poema – que devido à sua importância certamente nunca deixará de ser estudado –, afinal, existem muitos outros aspectos a serem observados e aprofundados, mas evidenciar a estreita relação existente entre forma e conteúdo da composição, produzida com tanta sutileza e astúcia pelo autor, e fornecer ao leitor algumas informações intra e extratextuais importantes para a compreensão de tão valioso texto de nossa literatura.

Dica de leitura: Para mais poesias infantis de Manuel Bandeira visite a página http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_infantil/manuel_bandeira.html
Curiosidade: o músico Tom Jobim musicou o poema Trem de Ferro em 1986.
Referências:

GT1 – Poesia Infantil

6 comentários:

  1. Me deu saudades dos meus tempos da escola primária....muito lindo tive um djavú!

    ResponderExcluir
  2. Moro em Ouricuri e fiquei curioso. Qual seria o conhecimento do autor da cidade? Ou seria apenas uma forma de completar a rima? Pois o município foi emancipado em 14/05/1913. De qualquer forma interessante.

    ResponderExcluir
  3. Estou aqui só para fazer pesquisar de escola :v

    ResponderExcluir