quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Lampião e o racismo no céu


Enredo
 
Em seu livro “ O grande pecado de Lampião e sua terrível peleja para entrar no céu”, o autor Joel Rufino dos Santos apresenta como narrador um cego cantador que conta a peleja do famoso cangaceiro para entrar no céu.



A história inicia quando Lampião chega ao céu e se apresenta como o famoso cangaceiro para São Pedro. Quando o Santo percebe que é Lampião, ele saca um cacete e expulsa o bandido das portas do céu. Indignado, Lampião saca a peixeira e manda São Pedro abrir a porta mesmo assim. Diante da situação, os outros santos (que observavam curiosos a briga) entram para auxiliar o amigo São Pedro. Vendo toda aquela bagunça, São Jerônimo lança um raio para acabar com a briga e Santa Luzia dá uma ideia: ela decidiu olhar o livro da verdade, nele está escrito tudo que Lampião ou qualquer outra pessoa fez de ruim e bom enquanto estava na terra. Se na página que os santos abrirem estiver algo bom, Lampião entra no céu, se estiver escrito algo ruim, vai direto para o inferno.
 
A página que é aberta conta o dia em que Lampião chega com seu bando na cidade de Cajazeiras. Lá, Lampião conversa com o Padre, que tremia muito, e pede um lugar para passar a noite. O Padre, com muito medo, arruma um lugar na capela para o bando passar a noite, porém, fica com medo dos cangaceiros roubarem as imagens de vários santos que estavam ali. No dia seguinte, o Padre vai ao encontro de Lampião e seu bando, mas os vê de saída. Com medo de não ter sobrado nada na capela, o Padre entra rapidamente para verificar e surpreende-se com o que vê: Lampião deixou um regalo na frente de cada imagem, só não deixou na de São Benedito.
 
Convencidos de que Lampião tinha feito uma boa ação, Santo Antão pede para abrirem a porta do céu. Porém, São Benedito pergunta o porquê de ser o único que não recebeu uma lembrança na sua imagem. Visivelmente constrangido, Lampião diz que o motivo foi que não existe Santo negro. Nesse momento, a revolta dos outros santos foi tamanha, que começaram a dizer que existem santos de todas as cores e aquilo era um absurdo de ser dito. No mesmo instante, São Pedro tranca as portas do céu e Lampião é mandado para o inferno acusado de ser racista.
 
Questões Ideológicas

Nota-se que Joel Rufino dos Santos, autor do livro, trabalha sua história sobre um realismo fantástico, contando a fábula de Lampião em busca da sua entrada no céu. No entanto, o que mais nos chama a atenção na obra não é a linguagem, a ilustração ou a cultura popular, mas a maneira como a temática etnicorracial é apresentada. Na história, o tema racismo é responsável por introduzir "elementos sobrenaturais" (KHÉDE, 1986, p. 21), os santos, ou seja, personagens maravilhosos são usados para retratar um tema polêmico: o racismo.
 
Conforme a definição, Racismo é uma maneira de discriminar as pessoas baseada em motivos raciais, cor da pele ou outras características físicas, de tal forma que umas se consideram superiores as outras. Portanto, o racismo tem como finalidade intencional (ou como resultado) a diminuição ou a anulação dos direitos humanos das pessoas discriminadas. Exemplo disto foi o aparecimento do racismo na Europa, no século XIX, para justificar a superioridade da raça branca sobre o resto da humanidade.
 
A discriminação racial é um conceito que normalmente é confundido com racismo (e que o abarca), mas se trata de conceitos que não necessariamente coincidem. Enquanto o racismo é uma ideologia baseada na superioridade de uma raça ou etnia sobre outra, a discriminação racial é um ato que, embora esteja fundado em uma ideologia racista, nem sempre pressupõe uma superioridade racial. Ou seja, é preciso deixar claro que a discriminação racial positiva (quando as discriminações têm como objetivo garantir a igualdade das pessoas afetadas) constitui uma maneira de discriminação cujo objetivo é combater o racismo.

Historicamente, o racismo tem servido para justificar uma série de genocídios (crimes contra a humanidade) e diversas formas de dominação das pessoas. Exemplo disto foi a escravidão, a servidão, o
colonialismo e o imperialismo, dito de outra forma, uma total afronta a dignidade humana básica de diversos povos ao longo do tempo. Com base nessa afirmação, justifica-se a atitude de Lampião ao menosprezar o santo negro, acreditando que santos negros não existem. Atualmente, ações racistas e/ou discriminatórias são consideradas crimes. Notamos, assim, que, a barragem de Lampião na porta do céu, e seu consequente deslocamento para o inferno, é uma forma de punição por sua atitude racista; apesar de cometer vários crimes, ele é punido rigorosamente por ter sido racista.

Nas últimas semanas, o problema da discriminação racial está sendo amplamente discutido na mídia devido à repercussão de “Negrinha”, livro de Monteiro Lobato, que trouxe à tona este assunto tão polêmico. Não foi diferente no ano passado, quando o livro “Caçadas de Pedrinho”, também de Lobato, criou uma dúvida/questionamento sobre até que ponto indícios de discriminação racial, ou qualquer outro tema politicamente delicado pode fazer parte de um livro de literatura infanto-juvenil. 
A escolha do livro de Joel Rufino dos Santos foi para refletirmos, com mais precisão, sobre o racismo e a discriminação racial (já teorizados anteriormente no texto). O tema central da obra é a discriminação racial, visto que o destino de Lampião em ser mandado para o inferno resulta dessa temática, como já mencionado. Vale ressaltar que a obra apresenta diversos temas polêmicos (dentre eles: assassinato, religião, etc.), mas optamos aqui por fazer um recorte e destacar apenas as questões raciais.



Percebemos que o livro transmite ao leitor uma lição de moral e mostra, por meio de um cangaceiro, visto como bandido e homem sem piedade nem honra, que atitudes preconceituosas são repudiadas em qualquer situação da vida e, mesmo depois da morte, terão consequências para a pessoa que agir dessa forma, pois no caso de Lampião, foi mandado para o inferno.


Considerações Finais

O leitor tem em mãos um livro divertido, mas que lhe garante uma problemática presente em seu cotidiano. O contexto em que ele vive e a situação que ele encontra no livro o fazem questionar – seja uma criança ou adulto – e julgar como, em pleno século XXI, ainda presenciamos situações como a sofrida por São Benedito. Porém, deixa claro que a atitude do personagem é extremamente incorreta. Segundo Perrotti,
:
(...) a literatura para crianças [buscou] inicialmente inspiração na literatura oral e não na tradição literária Greco-latina, a atitude social de transformar esta última em utilidade, ao diluir o estético, é já corrente na Contra-Reforma e define o entendimento que a burguesia teria do que deva ser uma literatura para o público infanto-juvenil em vias de formação. O discurso utilitário está instituído como modelo dominante, desde essa época, como deixa claro Soriano ao dizer que “os critérios dominantes no setor da literatura para crianças desde a Contra-Reforma giram em torno da noção de ‘moralidade’, rubrica geral que reúne alguns imperativos referentes às ‘boas maneiras’ e de um modo ainda mais rigoroso, o pudor. E um outro critério, este, político, não é menos importante. As obras destinadas à juventude não devem jamais colocar em questão a ordem estabelecida. (PERROTTI, 1986).

Assim, a obra de Joel Rufino dos Santos é utilitária, pois apresenta criticamente temáticas sociais, sem fugir do que realmente tem de ser feito, repudiar a atitude racista.  

Referências

KHÉDE, S. S. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986.
 
PERROTTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
Acessado em 08/10/2012 http://www.infoescola.com/sociologia/racismo/ 
 
GT3 - Literatura e Ideologia
 

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