quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Apanhei assim mesmo... Outra "história malcriada" de Ruth Rocha



Enredo e comentário crítico

Como já explorado anteriormente neste espaço, o livro Historinhas malcriadas de Ruth Rocha apresenta um apanhado de quatro histórias ("O dia em que eu mordi Jesus Cristo", "Apanhei assim mesmo...", "Bom pra tosse", "O dia em que meu primo quebrou a cabeça do meu pai"). Trataremos aqui da segunda: “Apanhei assim mesmo...”. No início, ao lermos o título do conto, nos deparamos com um assunto que mexe com a opinião pública, pois entramos na discussão sobre incluir, ou não, castigos físicos na criação das crianças. Ao nos depararmos com este título, fazendo uma ligação com o título do livro, pressupomos que algo errado há de acontecer.



Ao iniciar a história, o narrador, sem delongas, já põe o leitor a par do modo de ser de seu pai, “Precisa de ver como o meu pai é bravo! Ele nem pergunta muito...Qualquer coisa e a gente já leva uns safanões”. Logo em seguida, diz que sua madrinha é quem sempre o livra das travessuras por ele cometidas, dando a estas uma certa ênfase: “E quando eu apronto, eu apronto, mesmo!”.  Após isso, ele conta que, certo dia, um homem fora visitá-los e, ao ir embora, esqueceu um maço de cigarros. O menino nunca havia fumado e sofre chacotas de seus colegas de classe por isso. Essa atitude desperta no menino o desejo de fumar, nem que fosse uma única vez.

A partir de então, observamos que o conto de Ruth Rocha aborda uma temática polêmica e atual: o tabagismo na adolescência. O garoto, após encontrar os cigarros e contextualizar o leitor, vai à cozinha, pega uma caixa de fósforos e, de forma discreta, se dirige aos fundos da casa, sobe no muro e começa a fumar. A princípio, estranha aquilo, acha ruim, mas insiste e, como já haviam lhe dito que “no começo é ruim mesmo”, procede com a ação. Foi enjoando, mas continuava. 

Um fato curioso é observado, na sequência, pois ele faz referência ao fato de estar seguindo o que seu pai fazia. Vemos uma nítida correspondência com fatos sociais: crianças recebem influências dentro do ambiente familiar. Sabemos que estudos comprovam que a principal influência que uma criança pode ter para a entrada no tabagismo é ter pais ou familiares próximos que possuam esse hábito, e o simples fato de pedir às crianças que peguem o maço, a caixa de fósforos, ou até mesmo acender o cigarro, aumenta cerca de 65% as chances dos filhos fumarem.

Após fumar compulsivamente, o garoto cai do muro, na casa de Dona Esmeralda, que, ao vê-lo no chão, com vários cigarros ao seu redor, pressupõem o que lhe havia acontecido e, por conhecer o pai do jovem, resolveu contatar a madrinha do menino. Ambas o socorreram, jogando-lhe água no rosto para que ele acordasse. Ao acordar, devido ao enjoo ocasionado pelos cigarros e pela falta de costume com a prática, o menino vomitou. Sua madrinha, assustada, devido ao cheiro de cigarros que exalava do menino, sabia que, se ele voltasse para casa naquela situação, o pai lhe aplicaria uma bela surra. Resolveram, então, escovar a boca dele, mas nada lhe retirava tal cheiro, até que Dona Esmeralda veio com um copo de pinga da cozinha dizendo que a melhor coisa para tirar cheiro de cigarro era pinga; assim o garoto fez.

Com isso, o jovem retornou para a casa, onde estava seu pai entretido com a televisão, ao passar por trás deste a caminho do quarto, o pai sem nem olhar para o menino o chamou e aplicou uma surra por sentir o cheiro de pinga no menino.

Percebemos, desta forma, a inconsequência das duas mulheres, que não pensaram nos efeitos da ingestão de bebida alcólica pelo garoto. É nítido, também, a inocência da criança, em tentar imitar o pai, sem se dar conta de que seu organismo é mais frágil que de um adulto, e em querer fumar para se igualar aos seus “amigos”. Remete-se, assim, a uma afirmação de Khéde (1986, p. 20) de que o personagem criança, “quando aparece, está ligado à representação da fragilidade e da inocência (embora plena de bom senso)”: o menino é frágil por aceitar as provocações dos amigos e inocente por acreditar que conseguiria fumar como seu pai. Entretanto, ele possui bom senso, pois tem consciência de que o que está fazendo não é correto, tanto que faz escondido.

Ressaltamos, ainda, a violência do pai, que sequer pensa em dialogar com o filho, e recorre ao ato extremo de bater sem medir as sequelas físicas e psicológicas que, provavelmente, irá deixar no garoto. Isso propicia uma interpretação crítica da obra, ou seja, retrata algumas realidades sociais que, infelizmente, são recorrentes nas famílias, destacamos, dentre elas, a violência gratuita e o consumo precoce do cigarro.

Questões ideológicas e análise

O conto “Apanhei assim mesmo...” trata-se de um texto narrativo, pois apresenta um narrador que conta a história (real ou fictícia), nesse caso, um narrador autodiegético, que é o protagonista (o menino, que não recebe nome) que narra as suas próprias vivências/aventuras. Desse modo, todo o enredo é apresentado sob a perspectiva do garoto, que, ao nosso ver, apresenta um grau mínimo de intrusão: ele narra as sequências narrativas, apenas descrevendo uma peripécia praticada por ele, mas, em algumas passagens expressa sua opinião (como em sua afirmação: E quando eu apronto, eu apronto, mesmo!), ou faz afirmações que extrapolam a mera descrição (nessa declaração, por exemplo, “Mas eu não parei, que ser homem não é mole!”). Com isso, tem-se uma focalização narrativa interna/homodiegética, que, como já afirmamos, deixa prevalecer o ponto de vista de uma das personagens que vive a história.

No que diz respeito à ação, o leitor tem conhecimento do destino final das personagens e a história apresenta princípio, meio e fim. Entretanto, os questionamentos possibilitados pela narrativa ficam em aberto, a critério da interpretação do leitor.

Os personagens do conto são planos, ou seja, superficiais em sua caracterização, pois são construídos em torno de uma só ideia ou qualidade, sendo possível defini-los em poucas palavras. A madrinha é a boazinha, que busca socorrer o afilhado, protegê-lo contra as maldades do pai. Este é um conservador, intolerante, que busca resolver seus problemas com “uma boa surra”. Já o garoto, apresenta traços de um garoto comum – que busca seguir as tendências e corresponder ao que os garotos de sua idade fazem, por isso resolve fumar; mas não é bem sucedido em sua tentativa e por isso volta para casa como o “bom garoto” de sempre, mas apanha por algo que não fez, ou melhor, não fez culposamente, pois seguiu o conselho da madrinha.

Sendo assim, o garoto, por ser protagonista, é claro, é quem move as situações do conto: ele encontra um problema (fumar, ao menos uma vez na vida) e busca solucioná-lo. A princípio, consegue, pois, mesmo que escondido, fuma. Contudo, por ser inexperiente e ingênuo, tenta imitar seu pai e fuma compulsivamente, o que o leva ao desmaio e conduz a narrativa para o seu clímax (o que fazer para esconder do pai o cheiro de cigarro?) e, consequente, desfecho (bochechar a pinga e apanhar por isso).
Nesse contexto, ressaltamos as palavras de Coelho (1997) que afirma

a importância que se atribui, hoje, à orientação a ser dada às crianças, no sentido de que, ludicamente, sem tensões ou traumatismos, elas consigam estabelecer relações fecundas entre o universo literário e seu mundo interior, para que se forme, assim, uma consciência que facilite ou amplie suas relações com o universo real que elas estão descobrindo dia-a-dia e onde elas precisam aprender se situar com segurança, para nele poder agir (COELHO, 1997, p. 46).

Desse modo, observamos que o conto “Apanhei assim mesmo...” proporciona uma relação objetiva entre o contexto literário e contexto social, com o intuito de conscientizar as crianças sobre as realidades/problemas sociais que são recorrentes, apesar de muitas vezes ocultos, nos ambientes, em especial, familiares.

Esse conto apresenta um espaço físico, construído através de ambientes vividos pelas personagens e ligado às características da sociedade em que as personagens se inserem: a casa do garoto; os fundos da casa - o muro - e a casa da Dona Eugênia. Já em relação ao tempo, notamos um flashback, pois o garoto conta no presente (tempo da história) uma história que aconteceu no passado (tempo histórico).

Considerações finais

Nesse curto conto, a autora consegue, com humor, trabalhar, de forma integrada e muito inteligente, temáticas polêmicas que dizem respeito ao convívio da criança com sua família. Quando se trata de histórias para crianças fica difícil abordar temas tão complexos e polêmicos, mas Ruth Rocha, nesse texto, faz isso de uma forma tão suave que possibilita o uso desse texto em sala de aula para a educação de jovens sobre os males ocasionados por tais hábitos. Isso possibilita aos professores trazerem para o ambiente escolar, de forma contextualizada, esses problemas sociais e discutir com os alunos seus malefícios e conscientizá-los, formando cidadãos críticos e conscientes sobre assuntos que cada vez mais cedo afligem as famílias em todo o mundo. 

 
Referências Bibliográficas
  
COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria – análise – didática. São Paulo: Ática, 1997.

KHÉDE, S. S. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986.


Acessados em 07/10/12







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