domingo, 2 de setembro de 2012

Para que servem as fadas? Um exemplo com Marina Colasanti





A palavra fada vem do latim fatum, que significa destino. A imagem mítica das fadas tem sua origem incerta, mas se acredita que é oriunda de cultos anteriores ao paganismo, ligados às crendices da humanidade primitiva. É também a única divindade do paganismo que se misturou às crenças cristãs, diferentemente de faunos e centauros, por exemplo. Outrora, na idade média, os contos de fadas estavam ligados à literatura oral de origem folclórica, passadas pelos constituintes das camadas inferiores extremamente exploradas pelo senhor feudal, a fim de satirizá-lo. Já no século XVIII, com a ascensão da burguesia, alguns escritores profissionais passaram a compilar a literatura oral em textos escritos direcionados a crianças, com o objetivo pedagógico e moral de formar as futuras elites culturais de acordo com os valores burgueses – em oposição à classe dominante e em declínio, a nobreza.
 
Foi o surgimento da imprensa que permitiu que os contos de fadas começassem a ser escritos e disseminados – por volta de 1685 a 1700 – principalmente para um público particularmente simples. Em contraponto a esse movimento literário que nasceu em função dos ideais políticos burgueses, havia uma corrente filosófica que desprezava os contos de fadas, promovendo uma luta racionalista contra a ignorância e as superstições. De fato, nas narrativas tradicionais, o modo como as fadas solucionavam os problemas dos protagonistas subservientes e passivos por meio de seus passes de mágica ou golpes do destino tende para uma literatura de fuga e conformismo, incentivando o pensamento submisso, crédulo, e não cientificista. Porém, a forma como o caráter místico é abordado na literatura infantil contemporânea mostra que é possível fazê-lo de uma maneira não alienante. Pelo contrário: utiliza-se dos elementos fantásticos para promover uma reflexão crítica. É o caso do conto a seguir:

As notícias e o mel (Autora: Marina Colasanti / Livro: Uma ideia toda Azul)


Um dia o rei ficou surdo. Não como uma porta, mas como uma janela de dois batentes. Ouvia tudo do lado esquerdo, do direito não ouvia nada.
 
A situação era incômoda. Só atendia aos Ministros que sentavam de um lado do trono. Aos outros, nem respondia. E até mesmo de manhã, se o galo cantasse do lado errado, Sua Majestade não acordava e passava o dia inteiro dormindo.
 
Foi quando mandou chamar o gnomo da floresta, e o gnomo, obediente, apareceu na corte. Veio voando com suas asinhas, tão pequeno que, embora todos estivessem avisados da sua chegada, quase o confundiram com um inseto qualquer.
 
Chegou e logo se entendeu com o rei, estabelecendo um trato. Ficaria morando no ouvido direito e repetiria para dentro, bem alto, tudo o que ouvisse lá fora. Tendo asas, e desejando, poderia aproveitar seu parentesco com as abelhas para fabricar, no ouvido real, alguma cera e um pouco de mel.
 
O trato funcionou às mil maravilhas. Tudo o que o gnomo ouvia, repetia em voz bem alta nas cavernas da orelha, e o eco e a voz do gnomo chegavam até o rei, que passou a entender como antigamente, de lado a lado.
 
Correu o tempo. Rei e gnomo, assim tão vizinhos, foram ficando cada dia mais íntimos. Já um sabia tudo do outro, e era com prazer que o gnomo gritava, e era com prazer que o rei ouvia o zumbidinho das asas atarefadas no fabrico da cera e do mel. Uma certa doçura começou a espalhar-se do ouvido real para a cabeça, e o rei foi ficando aos poucos mais bondoso. Um certo carinho foi se espalhando da caverna real para o gnomo, e ele foi ficando aos poucos mais bondoso.
 
Foi essa a causa da primeira mentira.
 
O Primeiro Ministro deu uma má notícia no ouvido esquerdo, e o gnomo, não querendo entristecer o rei, transmitiu uma boa notícia no ouvido direito.
Foi essa a primeira vez que o rei ouviu duas notícias ao mesmo tempo.
 
Foi essa a primeira vez que o rei escolheu a notícia melhor.
Houve outras depois.
 
Sempre que alguma coisa ruim era dita ao rei, o gnomo a transformava em alguma coisa boa. E sempre que o rei ouvia duas notícias escolhia a melhor delas.
 
Aos poucos o rei foi deixando de prestar atenção naquilo que lhe chegava do lado esquerdo. E até mesmo de manhã, se o galo cantasse desse lado e o gnomo não repetisse o canto do galo, Sua Majestade esquecia-se de ouvir e continuava dormindo tranquilo até ser despertado pelo chamado do amigo.
 
De um lado o mel escorria. Do outro chegavam as preocupações, as tristezas, e todos os ventos maus pareciam soprar à esquerda da sua cabeça.
Mas o rei tinha provado o mel, e a doçura era agora mais importante do que qualquer notícia. Entregou o trono e a coroa para o Primeiro Ministro. Depois chamou o gnomo para junto da boca e murmurou-lhe baixinho a ordem.
 
Obediente, o gnomo voou para o lado esquerdo e, aproveitando seu parentesco com as abelhas, fabricou algum mel, e abundante cera, com que tapou para sempre o ouvido do rei.

O texto acima, que é um conto de fadas da literatura infantil contemporânea, possui elementos fantásticos e imagens doces, bem como um protagonista conformado em rejeitar a realidade por meio do isolamento do mundo, e pela própria inserção em um mundo fantástico e fictício. Porém, diferentemente das personagens da literatura infantil tradicional, sua passividade é colocada como uma característica doentia de dependência. Diante disso, o leitor, mesmo que uma criança, pode facilmente se deparar com o caráter fantástico da narrativa de forma crítica, e não alienante. Vale ressaltar que para que um conto seja caracterizado como conto de fadas, não é necessário que ele possua especificamente um ser sobre-humano feminino com asas, varinhas de condão, e todas aquelas características que nos remetem à imagem de uma fada, mas que uma das personagens seja um ser sobrenatural com poderes místicos.
 
O conto apresenta uma moral implícita, pois no momento em que o Rei opta por ouvir apenas as boas notícias e despreza as ruins, sofre consequências, que no caso, é de não encarar a realidade. Essa situação possui relação estreita com o nosso cotidiano, o que muda é a forma como lidamos com elas. Cada atitude traz uma consequência, e cada consequência resulta em diferentes aprendizados que influenciam o crescimento pessoal de cada um. O conto em questão evidencia que por meio do fantástico pode-se promover uma reflexão que leva à compreensão da necessidade de encarar os problemas de frente, incentivando a criança a possuir uma postura ativa diante dos obstáculos que a vida lhe apresenta – o que corresponde aos ideais afirmados pelos filósofos racionalistas do século XVIII – e não a formação de valores alienantes e passivos.

GT 1 - Contos de fadas e narrativas orais (mitos e lendas)

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