domingo, 9 de setembro de 2012

O retrato do sistema político na obra infantil “O reizinho mandão” de Ruth Rocha



Na história infantil “O reizinho mandão”, de Ruth Rocha, observamos a mesma temática da obra analisada anteriormente (ver O rei que não sabia de nada. Alguma novidade?): o sistema político e a forma como os cidadãos brasileiros têm se comportado perante as situações impostas pelas “autoridades”.  

A obra é narrada em terceira pessoa, em uma espécie de flashback, pois é um narrador que conta a história que seu avô contava, a história do reizinho mandão, que chegou ao poder após a morte de seu pai. Ao assumir o reino, o novo rei manda e desmanda na população, criando leis inúteis e proibindo a intervenção dos demais conselheiros. Notamos a acentuada ironia da escritora ao colocar em evidência, em seu texto, a ideia de que, além de não fazer nada para ajudar a população, o reizinho criava leis sem utilidade (“Fica terminantemente proibido cortar a unha do dedão do pé direito em noite de lua cheia!” / “É proibido dormir de gorro na primeira quarta-feira do mês”) apenas para mostrar o tamanho de sua autoridade/seu poder: “Agora, porque é que ele inventou essas tolices, isso ninguém sabia. Eu tenho a impressão de que era mesmo mania de mandar em tudo.”

O reizinho apresenta um autoritarismo exacerbado e quando as pessoas que estão em sua volta tentam se pronunciar ele as manda calarem a boca. Em virtude de toda essa autoridade, as pessoas passaram a não falar mais. Ao notar que as pessoas se calam perante ele, que abaixam suas cabeças e optam por não questionarem seu governo duvidoso, ele acredita ser o “melhor de todos” e que é acatado por ser uma pessoa muito importante. No entanto, destacamos que os cidadãos se calam não por respeito, mas por medo.

Depois de algum tempo, o rei se desespera com o silêncio do reino, como não consegue reverter a situação, percebe que precisa de ajuda. Desse modo, resolve procurar um sábio, de uma cidade vizinha. Foi para a cidade acompanhado de seu único amigo, um papagaio, que repete, insistentemente, a frase marcante do rei: “cala a boca”. A presença do papagaio na obra demonstra, como afirma Lourenço (2008, p. 237), dois fatos importantes, pois ele (a) “é considerado a ave nacional, por esse motivo foi feita a sua escolha como animal de estimação, pois a autora, de alguma forma, quis retratar o nosso país” e (b) “por ser um animal que repete tudo o que lhe ensinam, que era o que o reizinho esperava de seu povo, ou seja, que aceitassem os seus desmandos, fazendo o que ele mandava”. Desse modo, o papagaio representa um “símbolo da história”.

Quando chega à cidade vizinha, o reizinho encontra um sábio a quem busca ajuda. este, após xingá-lo, lhe diz que deve retornar ao seu reino e procurar pela única criança que ainda sabe falar, pois ela dirá o que ele deve fazer. Ao voltar a sua cidade, o reizinho percorre todas as casas, até que encontra uma menina que demonstrava falar. Ele insisti várias vezes para ela falar, mas a menina nada diz. Com isso, o reizinho se irrita. Ao ouvir a voz irritada do reizinho, o papagaio grita: cala a boca. Nesse momento, a menina se revolta e grita: cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu. Após essas palavras, que representaram liberdade para o povo do reino, a alegria volta a reinar no cidade. Oliveira (apud, LOURENÇO, 2008, p. 240) faz uma análise satisfatória dessa frase argumentando que ela representa “uma 'malcriação' muito comum na fala infantil, que no texto recupera a carga de rebeldia e imposição do direito à voz”. A autora vai além disso, observando também que esta voz é feminina e infantil, assim representando duas identidades oprimidas pela sociedade patriarcal, pois "Criança não se mete em conversa de adultos. A mulher deve obediência a seu marido. E por aí vai”. Com isso, observamos que a obra valoriza uma postura rebelde, enfatizando que não devemos nos calar perante o autoritarismo exacerbado.

Após a solução do conflito, que devolve a voz e a alegria ao povo do reino, o reizinho sai correndo sem deixar pistas do seu destino. Notamos, portanto, que a intenção do rei não era mudar, deixar de mandar todos calarem a boca e passar a dar ouvidos aos que os outros falavam, mas a falta de ter quem mandar calar a boca foi demais para sua personalidade egoísta e possessiva, tanto é que vemos no final do conto que não houve uma mudança de valores em seu caráter, pois ao se deparar com as vozes de todos, falando, cantando e sorrindo, ele ficou novamente perturbado, apavorado, e “saiu correndo pela estrada” por não se adaptar à alegria do país.

Vale ressaltar que
 
Mesmo se apresentando como um anti-herói por suas atitudes, o reizinho mandão decide “consertar o estrago” que tinha feito, mostrando-se arrependido, e a partir desse momento ele muda, pois quer fazer algo para ajudar as pessoas. Portanto, percebe-se que ele pode ser considerado um herói, porque irá em busca da resolução desse conflito e assim ajudará o seu povo (LOURENÇO, 2008, p. 238).

Em outras palavras, apesar das atitudes desaprováveis do reizinho (criando leis desnecessárias e humilhando a população com uso abusivo do poder), ele busca uma solução para o problema que ocasionou e acaba devolvendo a alegria ao seu povo.

Segundo Lourenço, há na obra uma crítica aos governos militares, uma vez que a primeira edição da obra é de 1978. No entanto a obra não tem sua significação limitada pelo momento a que se refere, apresentado-se ainda atual, pois:

(...) mesmo que a obra retrate um momento em que o Brasil estava enfrentando, ela não ficou datada, considerando que nos dias de hoje, ainda tem muito a nos dizer, pois os “reizinhos mandões” estão por aí, independentemente da época, representando inúmeros personagens da cena pública que mandaram e desmandaram a seu bel-prazer. Portanto, precisamos ser críticos, como a menina da história, e não nos calar para a prepotência (LOURENÇO, 2008, p. 234 - 235).

Notamos, assim, que os reizinhos mandões ainda existem, mas cabe a população usar de “rebeldia” para não ser vencida pelos dominantes autoritários. Para finalizar, Lourenço afirma que

                         Para o leitor, esta obra faz pensar sobre a consciência crítica, o sentido de justiça e a capacidade de refletir sobre a questão do autoritarismo e da liberdade de expressão. Entende-se que a autora quis transmitir ao longo dessa narrativa, propostas éticas, de maneira implícita e agradável (LOURENÇO, 2008, p. 242).

Em nossa análise, afirmamos que, nesse livro, a autora deixa implícito, ao finalizar sua história, um conselho à sociedade: não calar seu grito de desespero e revolta, pois, assim, pode haver uma mudança nas formas de governo, considerando que a voz de cada um é necessária para revelar a insatisfação e a inconformidade da população.


Referência bibliográfica:
 



GT 3 Literatura e ideologia


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